Em mais um grande artigo, Gustavo Ioschpe mostra mais uma aberração desse nosso sistema educacional burro!
Mas, todos só falam em "mais dinheiro para a educação, mais dinheiro para a educação..."
"Universidade gratuita para aluno rico é aberração brasileira.
"Seu Gustavo”, interfonou o porteiro do meu prédio, “o senhor não vai
escrever nada sobre esse Mais Médicos?” Perguntei-lhe o que achava de
mais essa iniciativa natimorta do governo como resposta às manifestações
de junho. “Acho até que os médicos precisam devolver algo à sociedade,
mas não sendo forçados a ficar dois anos em hospital público”,
respondeu. É uma lógica elementar: em um estado de direito, ninguém pode
exercer uma profissão contra a sua vontade. A frase me fez lembrar de
uma declaração do ex-ministro Márcio Thomaz Bastos. Quando um cliente
recém-absolvido diz não saber como expressar sua gratidão pelos serviços
do advogado, a orientação de Thomaz Bastos é simples: “Depois que os
fenícios inventaram a moeda, esse problema ficou simples de resolver”. É
isso. Existe um modo fácil de garantir que futuros médicos,
engenheiros, advogados e estudantes de outras carreiras ressarçam os
cofres públicos: cobrar mensalidades de quem pode pagar. Por que criar
planos tão mirabolantes, e circunscritos a médicos, se há um modelo mais
simples e aplicável a todos?
Há um argumento apontado por quem vai contra essa ideia: as
universidades públicas não podem cobrar mensalidades porque tudo que é
público precisa ser gratuito. Nenhuma dessas pessoas vai aos Correios e
espera mandar um Sedex de graça nem passa em postos da Petrobras
imaginando pagar a gasolina com espírito cívico. O fato de algo ser
público não tem relação com gratuidade. Se as universidades públicas
cobrassem mensalidades, continuariam defendendo interesses públicos. Na
maioria dos países desenvolvidos, as universidades públicas cobram
mensalidades. Na OCDE, associação dos países desenvolvidos, dezoito
membros cobram em suas universidades, incluindo os “neoliberais” Canadá,
França, Itália e Japão.
Algumas pessoas tentam desqualificar a cobrança alegando dificuldades
práticas. Esse sistema seria muito difícil de implementar, dizem elas.
Criaria um grande risco de deixar gente pobre de fora e ainda renderia
pouco aos cofres públicos. Ora, se isso fosse verdade, os países com os
melhores sistemas educacionais do mundo não o teriam adotado. Em
realidade, o modelo é simples: institui-se a cobrança de uma
mensalidade, e quem não tem condições de pagá-la procura a sua
universidade em busca de abatimento. O desconto pode, inclusive, ser
superior a 100%, dando não apenas gratuidade como auxílio de custo a
estudantes pobres. Basta levar a sua declaração de renda e a dos
pais/responsáveis para comprovar a ausência de renda. A Receita Federal
institui recomendações de valor-limite a ser cobrado de acordo com a
renda familiar. Com uma simples regra adicional, para não facilitar
ainda mais a vida dos sonegadores: quem cursou o ensino médio em escola
privada deve pagar pelo menos a mensalidade que pagava na escola. O
esquema não renderia pouco, não. Nas últimas semanas fiz o seguinte
exercício: com dados cedidos pela Hoper Educação, descobri as
mensalidades das universidades privadas top de linha em oito grandes
capitais brasileiras para os quinze cursos com mais alunos na graduação.
Tomando como base o perfil socioeconômico dos alunos da USP, estimei a
porcentagem de alunos que cursaram o ensino médio em colégios
particulares para cada um desses cursos.
Presumi que essas pessoas poderiam continuar pagando mensalidades pelo menos iguais às das melhores universidades privadas (explicações mais detalhadas dos cálculos estão em twitter.com/gioschpe).
Provavelmente é até um valor subestimado, já que muitas das
universidades públicas têm melhor qualidade que as privadas e, portanto,
poderiam cobrar mensalidades mais altas. Mas apenas com esse esquema
simples de cobrança seria possível arrecadar mais de 7,4 bilhões de
reais por ano. Mesmo em um país de cifras e desperdícios colossais, não é
pouca coisa.
Mais decisiva que o valor diretamente arrecadado ou o fim de uma
injustiça social em um país tão desigual, a cobrança de mensalidades nas
universidades públicas permitiria sanar sérias distorções do nosso
modelo de ensino superior. O Ministério da Educação (MEC) poderia cortar
o financiamento ao orçamento geral das universidades federais (a mesma
coisa para as secretarias estaduais de educação e as universidades
estaduais). As universidades seriam responsáveis por obter seu
financiamento diretamente dos alunos. Os alunos que não pudessem pagar a
mensalidade seriam subsidiados diretamente pelo MEC. Isso forçaria as
universidades públicas a cobrar mensalidades de valores compatíveis com
os de mercado. Com sua atual estrutura de custos, seria impossível.
Nossas universidades públicas viraram cabides de emprego. Há só dez
alunos por professor em nossas universidades federais, ante 15,5 nas da
OCDE e dezoito nas nossas universidades privadas. Há apenas oito alunos
por funcionário, contra 21 nas privadas. Pior: a maioria dos professores
é remunerada como se fosse pesquisador de tempo integral, condição real
restrita, de fato, a uma pequena minoria. Para fecharem as contas, as
universidades teriam de demitir professores e funcionários improdutivos.
E talvez baixar o salário fixo dos professores. O MEC e as agências de
fomento complementariam sua renda por meio de pagamento por projeto de
pesquisa. Estimulariam a produtividade de nossos melhores pesquisadores
(e há excelentes pesquisadores em nossas universidades, na maioria dos
casos irritados por ter de aturar colegas descompromissados). Outro
caminho para as universidades seria o incremento na área de extensão,
aquela que lida com empresas e outros públicos externos, fazendo com que
suas atividades beneficiassem o setor produtivo brasileiro. Hoje o
Brasil produz um número razoável de doutores e papers, mas muito poucas
patentes. E é muito difícil para as empresas contarem com pesquisadores
de ponta em seus projetos, já que a academia lhes oferece salário bom e
estabilidade no emprego.
O que fazer com todo o recurso que seria poupado pelo MEC e pelas
secretarias, substituído pelo pagamento de alunos e de projetos em
parceria com o setor produtivo? Quando comecei a defender essa ideia, há
mais de dez anos, sugeria que o dinheiro fosse reinvestido em educação
básica, à época ainda carente. Hoje já gastamos em educação básica o
mesmo que países desenvolvidos, e está claro que o gigantismo
paquidérmico do estado impede o país de crescer. Nada melhor, portanto,
que devolver esse dinheiro à sociedade, via redução de impostos.
Essa seria uma boa defesa para convencer aqueles que esgrimem um
argumento canhestro para defender a manutenção da gratuidade até para
alunos abastados: “Mas eu pago tanto de impostos e nunca recebo nada de
volta do estado, a única coisa que exijo é universidade gratuita pros
meus filhos”. Bem, mesmo quem não usa hospitais ou escolas públicas
recebe bastante do estado, sob forma de policiamento, estradas, defesa
nacional, sistema judiciário etc. E o objetivo de um sistema de
tributação justo não é ser um toma lá dá cá, em que você paga de um lado
e recebe do outro, mas sim fazer a redistribuição de renda, em que os
mais ricos ajudam os mais pobres. Sim, eu concordo: a qualidade do
serviço público brasileiro é péssima e deveria melhorar. É uma
injustiça. Mas é só em matemática que dois negativos fazem um positivo.
Não é com a injustiça de uma universidade gratuita até para gente rica
que vamos consertar a injustiça maior de um estado incompetente.
Precisamos mudar as duas pontas."
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